Marconi


Diz-se que um brasileiro é um português com açúcar. Marconi, com a sua doçura, a simpatia extrema aliada ao seu tom escuro da pele, é puro chocolate negro. A vida colocou-lhe agora uns cabelos brancos no alto da cabeça e acrescentou-lhe muita sabedoria somando-a à inteligência e irreverência que já possuía.

Aterrou em Portugal aos 20 anos para jogar no Gil Vicente. Vinha do Sport Club do Recife e - todos pela mão do lendário treinador Joaquim Meirim - com ele vieram Celton, Pedrinho, Dejair, Nivaldo, o uruguaio Cardoso e Fraga, que pouco tempo esteve cá. Um sexteto de luxo de uma forte equipa do Gil que fez furor na década de 1970 do século passado. Em momentos posteriores ainda chegaram mais alguns futebolistas brasileiros, no que foi uma leva de bons jogadores que acrescentaram muito valor ao plantel do Gil Vicente desses tempos.

Dejair era o guarda-redes. Como Marconi, acabou por se fixar em Barcelos. Celton era o defesa central, um possante jogador de cabelo longo e negro, ficava na retina. Era conhecido como índio embora sem o ser. Pedrinho era um virtuoso e rápido extremo. Nivaldo, que também viveu cá longos anos, e Cardoso, o uruguaio que não quer morrer sem revisitar a nossa cidade, eram dois talentosos centrocampistas, fautores do melhor futebol.

Marconi era o ponta de lança. Alto (1,87m) e esguio (78kg), com uma farta cabeleira à estrela pop, a fazer lembrar Jimmy Hendrix, e um sorriso cativante, tinha um estilo gingão de jogar, que foi apurando com o tempo. Se, devido à sua altura, era bom de cabeça, tinha também uma excelente técnica com os dois pés, com que apontava os muitos golos que fazia e assistia os colegas.

“Marcava 16, 17, 20 golos por temporada. A maioria dos meus golos foi com os pés, pé direito, pé esquerdo. Quando os jogos estavam indefinidos e começava o “chuveirinho” para a área, eu tinha sorte, fazia golos decisivos com a cabeça e os adeptos recordavam-me por isso”.

Em Barcelos, jogou as épocas de 73/74 e 74/75 perdendo a subida à 1ª divisão para o Braga. Marconi recorda: “quem devia e merecia ter subido éramos nós”. Acabou por sair no ano seguinte precisamente para o Braga, épocas de 74/75 e 75/76, por quem disputou a final da Taça de Portugal com o Porto, jogada incrivelmente no estádio das Antas. 


Depois de dois anos no Braga, regressou ao Gil Vicente onde jogou na época de 77/78. De Barcelos, foi jogar no Lusitânia de Lourosa (78/79), no Desportivo de Chaves (79/80), no Recreio de Águeda (80/81), no Ginásio de Alcobaça (81/82), que subiu para a 1ª Divisão, na Académica de Coimbra (82/83), no Riopele (83/84), no Desportivo das Aves (84/85 e 85/86), onde novamente subiram para a 1ª Divisão. Em 86/87 foi jogar para o Desportivo de Bragança onde terminou a carreira como futebolista, aos 33 anos, e iniciou a sua carreira como treinador. Durante vários anos foi também treinador adjunto no Gil Vicente e orientou outras equipas dos campeonatos nacionais.

A sua passagem pelo Braga, na primeira divisão; a subida histórica à primeira divisão com o Alcobaça; a passagem pela Académica treinada por Mário Wilson, um dos melhores treinadores portugueses, de cuja equipa técnica faziam parte Vítor Manuel (treinador adjunto) e Nelo Vingada (preparador físico); e a subida com o Desportivo de Aves, acompanhado por Carlos Palheiras e dirigido pelo também barcelense professor Neca, revelam um percurso valioso a provar o valor de Marconi como futebolista, a sua sagacidade e evolução.

Nómada do futebol, como se caracteriza, Marconi casou-se em Barcelos e nunca mais abandonou a nossa cidade desde o primeiro momento que veio para Portugal. Cá fixou residência, tem os filhos e os netos. “Regressava todas as semanas a Barcelos com a preocupação de dar estabilidade aos meus filhos que ganharam raízes cá”.

Até este Verão, passava parte do ano no Brasil onde tinha os pais e as irmãs. Com a morte dos pais e no meio da pandemia de corona vírus, decidiu agora não voltar ao Brasil, quer passar o resto da sua vida em Barcelos, terra que o adotou e se tornou sua.

“Barcelos é tudo para mim! É a terra dos meus filhos e dos meus netos, a terra dos meus amigos. Vim para cá muito jovem e aqui fiz os meus amigos.”

Para além da simpatia, Marconi é de uma racionalidade e de uma sageza como se vê pouco. A sua vida de futebolista deu-lhe um conhecimento aprofundado sobre a realidade da modalidade em Portugal.

Conhece em detalhe e com uma memória que não esquece todas as incidências dos campeonatos disputados desde que para cá veio. Não se esquece dos jogos, das jogadas dentro e fora do campo…

Sobre a sua vinda para cá, lembra que Meirim não usava empresários para contratar jogadores, era ele próprio com a ajuda de amigos quem fazia a prospeção e detetava os jogadores que depois eram contratados.

“Estava muito à frente. Muita coisa do que se faz no futebol, já Meirim fazia, por exemplo, o aquecimento em campo foi ele o primeiro a fazê-lo. Na preparação física, na logística de cada jogo, no aspeto motivacional, psicológico, ele trabalhava muito bem os jogadores, preparava muito bem cada jogo. Para ele não havia não, não havia não posso”.

É célebre o caso de Freitas, central do F. C. Porto treinado por Meirim no Belenenses. Um dia, estavam todos os jogadores na piscina do hotel e Freitas disse a Meirim que não sabia nadar. O treinador respondeu perguntando-lhe sobre quem lhe tinha dito isso e ato contínuo convenceu-o do contrário incentivando-o a meter-se na piscina. A salvação de Freitas foram os colegas da equipa que o retiraram da água onde se começou a debater com as naturais dificuldades de quem não sabe nadar…

Embora reconhecendo a Meirim muitas qualidades, Marconi não esquece Mário Wilson, o velho capitão, que o treinou na Académica, e a sua equipa técnica. “Tudo gente com uma paixão louca pela Académica”.

Recorda os colegas do Gil: o Russo, O Dejair, o Palheiras, o Simões…

“O Simões jogava com uma joelheira mas não tinha nada no joelho, era um jogador extremamente rápido e surpreendia os jogadores adversários. Não gostava que lhe pusessem a bola nos pés, dizia que isso era um passe errado. Dizia-nos para colocar a bola nas costas dos adversários que ele aparecia lá. Era o ‘Speedy Gonzalez’.

O Dejair, o “santas tardes”, grande guarda-redes, muito católico, benzia a baliza toda. Palheiras, grande craque. Se não fosse o problema que ele tinha no joelho tinha ido para um clube grande de Portugal ou de qualquer outro país.

Nós conversávamos muito. As mecanizações são muito importantes. Nas férias, no rio Cávado, em S. Veríssimo, ensaiávamos uma jogada a que chamávamos a ‘jogada do rio’ que usávamos depois durante os jogos.

Passámos também alguns momentos difíceis, dificuldades financeiras, salários em atraso, mas a venda de Celton e Pedrinho ao Vitória de Guimarães deu algum retorno ao Gil Vicente.

No ano em que voltei ao Gil, o treinador era o Frederico Passos, voltei para subir, tínhamos uma boa equipa, mas a época não correu bem e quase que descemos. Veio o Hilário adjunto de José Carlos no Braga fazer os últimos quatro jogos e safámo-nos da descida”.

“A única lesão que tive foi no Aves onde fiz uma fratura na cabeça do perónio. Era poupado nos treinos para poder jogar no domingo.

Em toda a carreira só tive uma expulsão, jogava no Aves e foi num jogo contra o Espinho num lance com o célebre Freitas. Na segunda volta, estavam as duas equipas na corrida para subir, o professor Neca era o nosso treinador. Num lance meu com o Freitas, ele foi expulso. Fiz três golos nesse jogo, ganhámos por 5-0 e subimos de divisão.”

“O povo português é muito saudosista, a palavra saudade é própria de Portugal”, diz Marconi com acerto.

“Eu sou natural de Campina Grande, estado de Paraíba, mas com 3 anos fui com os meus pais para o Recife. Na ilha de Itamaracá onde passava férias, estava a ouvir música portuguesa - sempre ouvi música portuguesa - e passou um português de Miranda do Douro, perguntou por quem tinha colocado a música e de seguida se não podia trazer um vinhinho e confraternizar um pouco. Não é tarde nem é cedo. Ele estava com aquela saudade”.

Marconi foi um jogador que deixou muitas saudades pelos cubes por onde passou. Avançado que deixou marcas no Gil Vicente e no futebol português.

“Relacionava-me sempre bem nos clubes por onde passei”.

Com a decisão tomada agora, nestes tempos agitados pela pandemia, José Marconi é a melhor aquisição que Barcelos fez para os próximos anos.

 




Comentários

  1. Obrigado Mário por essa saudosa lembrança. e em vida tem outra dimensão. Voltei Barcelos foi a saudade que me trouxe pelo braço.

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  2. Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

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