Cândido Soares, “Russo”

Começa a falar e as lágrimas rolam-lhe pela cara abaixo, não consegue conter a emoção das recordações que guarda. Foi um dos jogadores mais acarinhados pelos gilistas, pelos barcelenses, quer pela sua superior qualidade futebolística, quer pela sua figura de jovem franzino, loiro. Um ídolo, uma verdadeira coqueluche dos adeptos do Gil Vicente.
Veio da vizinha vila de Fão para jogar em Barcelos com apenas 16 anos pela mão do treinador Eduardo “espanhol”. Ficou a viver na sua casa. Por cá jogou até perto do final da sua carreira. Aqui casou e ficou a viver até hoje como um barcelense de gema.
Ainda hoje é reconhecido pelos mais velhos que não se esquecem do seu nome, das suas exibições, do seu estilo.
A cada recordação emociona-se. A voz embarga-se e não contém as lágrimas.
Foram muitos os golos, muitos os momentos de glória, muitas as histórias que ficaram de uma vida inteira de futebolista… e depois de treinador.
Chegou ao Gil em 1967, para jogar como sénior (para isso era preciso uma autorização especial do ministro) e como profissional, o Gil Vicente já não subia há 13 anos.
Em 1970/71 foi campeão da série A da III Divisão e subiu à 2ª. Depois disputou a finalíssima contra o Cova da Piedade, em Coimbra, “chovia torrencialmente! Levámos um comboio especial. Infelizmente perdemos 3-0. Recordo-me de jogadores como o Paulino, o Carvalho, o Branco, o Torres, o Coimbra (treinador-jogador), o Silva, o Luís, o Sá Pereira, o Fernandes…
Tínhamos uma equipa muito forte. Em casa era difícil ganhar-nos e fora arrastávamos 30 ou 40 autocarros, só para lhe falar no fervor clubista que havia nessa época”.
No velho campo Adelino Ribeiro Novo tudo nesse tempo era diferente. O campo enchia-se totalmente e as equipas jogavam com o público literalmente em cima. As pessoas faziam um barulho ensurdecedor a bater nos placards de publicidade que rodeavam o campo. Quase que tocavam nos jogadores, nos fiscais de linha… Um pouco mais tarde, os clubes foram obrigados a vedar o terreno de jogo com redes de proteção.
“O clube era muito mais vivido pela cidade. Havia tertúlias, falava-se, respirava-se Gil Vicente por tudo que era lado. Não havia café, ‘tasco’, largo ou esquina onde não se falasse de futebol e do clube. No largo da Porta Nova, juntavam-se magotes de pessoas a falar do Gil Vicente. Um fervor clubista impressionante!
Quando Eduardo “espanhol” o viu jogar, “Russo” apenas sabia que jogava com o pé esquerdo. Não sabia nem tinha nenhuma posição específica em campo. Não tinha sequer bilhete de identidade. “Mal tinha dinheiro para comer, quanto mais para tirar o bilhete de identidade”. A direção tratou de tudo e a jovem promessa transferiu-se para Barcelos.
Jogou 12 anos consecutivos no Gil Vicente. Ao finalizar a carreira, ainda jogou no Mirandela, no Tirsense, no Bragança, no Monção, depois de ter recebido a costumeira, na época, festa de homenagem.
Depois de ter terminado a carreira de futebolista tornou-se treinador das camadas jovens do Gil durante 23 anos, com um convite inicial do professor Valdemar Araújo.
Ainda depois disso tornou-se o fiel treinador adjunto de Sá Pereira, outra antiga glória gilista, durante 14 anos, com o qual correu o país todo.
“Russo” foi um extremo esquerdo nato, que jogava em velocidade e drible curto, cruzava com facilidade: “era o meu forte. O pé direito era só para subir para o autocarro”, diz com humor. Não chegava aos 60 Kg. Os adversários eram muito duros e não lhe perdoavam. “Tenho as canelas todas crivadas de pancadas, era a única maneira de me travar”, recorda sem qualquer mágoa. Ficaram apenas duas lesões mais graves: uma quebra da clavícula, num jogo decisivo contra a Sanjoanense e uma rutura de menisco contra o Aves. As lesões do menisco eram, na altura, devido ao fraco desenvolvimento da medicina desportiva, muito comprometedoras. Teve sorte, passado um mês já estava a jogar contra o Riopele, marcando dois golos como extremo direito, posição em que o treinador da altura insistiu que ele jogasse.
Era exímio em arrancar penalties. Foi várias vezes o melhor marcador da II Divisão, zona Norte, em que o Gil participava. Embora jogasse na ala aparecia com facilidade dentro da área para finalizar os ressaltos. Jogava de mangas arregaçadas.
Jogou com diversos pontas de lança e avançados: o Mesquita, o Campinense, o Lula, o Marconi, o Toninho… Fica-lhe o melindre de não ter lembrado outros que o acompanharam. O primeiro foi o Mesquita.
E à memória vem o Ângelo. O Ângelo, um extraordinário jogador brasileiro do Gil Vicente que foi irradiado depois de uma agressão a um árbitro, num jogo contra o Vilanovense.
“Estávamos a ganhar o jogo por 1-0 e, a seis minutos do fim, há uma falta contra nós, a bola sobrevoou a nossa área, um colega nosso fez um corte de cabeça e um jogador do Vilanovense deu um pontapé no Ângelo. O Ângelo deu-lhe um ‘chega para lá’ e o árbitro expulsou-o. O Ângelo foi tirar satisfações com o árbitro e depois agrediu-o com dois socos. O jogo terminou logo ali. Foi um pandemónio´”. O treinador era o não menos lendário Joaquim Meirim.
“Íamos em primeiro lugar. No jogo seguinte, em Barcelos, perdemos 1-0, mas marcámos 3 golos limpos e nenhum valeu! Foi a represália! A maior confusão que eu vivi. Polícia de Braga, ambulâncias numa correria para o hospital. Tínhamos uma equipa fabulosa: Simões, Campinense e eu, Testas, Augusto, Sá Pereira, Ângelo; Murraças, Cibrão; Neto”, recorda de memória, com medo de errar no nome de alguns companheiros.
“O primeiro contrato que fiz com o Gil fiquei a ganhar 2500$00, mais alimentação e dormida.” Um operário têxtil ganhava então 400$00 por mês. Quando fui à sede do Gil, o treinador perguntou-me: «posso fazer o teu contrato?» E eu respondi: pode sim senhor, em si confio totalmente. Estava toda a Direção do Gil reunida. O presidente era António Silva.
“Fui muito bem acolhido. Gente maravilhosa. Caí no ‘goto’ das pessoas de Barcelos. Era muito querido. A massa associativa do Gil tinha muito orgulho em mim”… E o embargo volta-lhe à voz. “Dava tudo o que tinha em campo e era o jogador dos golos decisivos, que ficavam na retina das pessoas. As pessoas na bancada diziam, tenham calma que ele está lá, ele resolve. E resolvia, calhava-me bem. O futebol é feito de coisas boas e coisas más, mas eu tinha engodo pelo golo, enquanto não fizesse um golo, não descansava.
Quando vim para o Gil, com o Eduardo “espanhol” treinava de manhã e treinava de tarde, enquanto outros trabalhavam. Comigo vieram outros jogadores profissionais: o Mário Pepe, de Barcelos, que vinha do Guimarães; o Carvalho, de Esposende; o Fialho, que veio do Braga; o guarda-redes José António, que veio do Varzim, falecido recentemente; o Carlos Alberto, também do Varzim.
O Gil Vicente teve uma figura ímpar como presidente que foi o já falecido Trigueiros.
Uma vez, ganhámos 3-0 ao Sporting de Braga, aqui no Ribeiro Novo e eu faço 2 golos. No final o Sr. Trigueiros disse que queria falar comigo a sós e naquela altura deu-me 4 contos (4000$00), «não digas a ninguém…» Nunca vi alguém gostar tanto do Gil como aquele homem”.
“O Gil marcou-me para toda a vida. Joguei em mais clubes até ao final da minha carreira e procurava dar o máximo por todos eles, que me pagavam para isso. Mas o clube do meu coração era o Gil Vicente. Vim para o Gil muito novo e é próprio da idade ficar com o amor pelo clube desde o primeiro momento. E a massa associativa tinha tanto, tanto gosto em mim, que ainda hoje sinto isso na rua.
Vejo todos os jogos do Gil em casa, fora é mais difícil. Costumo ir com o meu genro ao futebol e de vez em quando digo-lhe que não vou mais. Fico de tal forma incomodado com as derrotas do Gil que só ao fim de dois ou três dias é que o desgosto me passa. Ainda me perguntam, hoje, a brincar se vou jogar e respondem: é que se tu jogasses o Gil ganhava!”
A comparação com a atualidade é inevitável. “Russo” recorda:
“Nesses tempos, era raríssimo o jogo em que o Adelino Ribeiro Novo não estivesse a transbordar, a rebentar pelas costuras. A Famalicão era normal levarmos um comboio especial. Íamos jogar a Chaves, a Vila da Feira, a Oliveira de Azeméis, a São João da Madeira, a Vila Real, levávamos 30 ou 40 autocarros! O Gil arrastava multidões. Era uma romaria quando íamos jogar a Viana, a Ponte de Lima, a Arcos de Valdevez. Quando o Gil ganhava fora, no jogo seguinte, em casa, o campo enchia por completo. As fotos demonstram isso.”
Mas também havia uma rivalidade pouco saudável que descambava muitas vezes para a violência: com o Vianense, com o Braga, com o Famalicão, com o Varzim, com o Fafe, o Vizela, o Riopele…
“A maior invasão de campo foi num jogo em Fafe, empatámos 0-0. Pensei que não ia chegar a casa, ficámos presos no balneário até às 10 da noite, foi preciso uma berliet da tropa ter-nos ido buscar!
Num jogo entre o Gil e o Famalicão, os adeptos do Gil concentravam-se na bancada e os do Famalicão no superior, do lado da Palheiras. Vieram confrontar-se ao meio campo!”
Com o treinador Joaquim Meirim vieram 12 jogadores brasileiros e o uruguaio Cardoso. “Havia mais gente nos treinos do que nalguns jogos! A vinda do Meirim foi uma loucura. O Meirim estava no auge. Estava naquela altura para o futebol como esteve agora o Mourinho.
Na altura só havia duas equipas em Barcelos que eram o Gil e o Santa Maria, e o Santa Maria ainda tinha pouca expressão. As freguesias da periferia da cidade caíam todas no Gil. Atualmente há o campeonato popular que faz concorrência ao Gil. Há futebol praticamente todos os dias. Há muito futebol na televisão. Hoje o Gil tem muita mais concorrência… os tempos mudaram muito.
As melhores recordações: “Joguei contra o Porto do Cubillas, Oliveira, Seninho e Fernando Gomes... Ganhámos aqui ao Benfica 2-0, com dois golos meus. Fomos às meias-finais da Taça de Portugal, um feito histórico. Empatámos 0-0, após prolongamento, em 4 de maio de 1977 e podíamos ter ido à final. Nesse dia o comércio e a indústria fecharam para as pessoas irem ver o jogo. Perdemos em Braga 4-1 e fomos eliminados.
E outras peripécias: “Em Vila Nova de Gaia fizemos um golo que não valeu. A bola entrou pelo meio da baliza, bateu com tanta força no muro atrás da rede que saltou para fora e o árbitro (Manuel Vicente, de Vila Real) não o validou, marcou pontapé de baliza.”
Os colegas pediam-lhe para fazer penálti e se não fosse à primeira ia à segunda. Os árbitros às vezes avisavam-no, “não compliques, estás a complicar!” “Por vezes não era penálti e eles marcavam, outras vezes era o contrário, era injustiçado. Levei alguns cartões amarelos por causa disso.”
“A minha festa de homenagem foi um jogo entre o Gil Vicente e uma equipa de ex-jogadores que ainda estavam em atividade
Tive convites do Braga e do Vianense. Cheguei a acordo com o Famalicão mas o Sr. Trigueiros soube. O presidente aumentou-me de 13 para 18 contos.
O Gil falava sempre mais alto do que qualquer proposta.”

Mário Costa






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