Um pedaço de terra

Há 15 anos, desde que me mudei para este prédio à entrada da cidade, que a casa em ruínas com o quintal abandonado, onde dominavam duas árvores de fruto por entre as silvas e as ervas que iam crescendo e desaparecendo no ciclo ininterrupto das estações do ano, fazia parte da minha paisagem.

Era um pequeno oásis natural, onde os frutos cresciam e apodreciam, caindo no chão e, sobretudo, pululavam pássaros e aves maiores, nas suas rotinas e devaneios diários. Ah! e quanto eu gosto de apreciar as aves e a sua liberdade, um dos meus maiores deleites, um dos meus prazeres desde sempre.

O pequeno quintal era fronteiro de uma cangosta por onde em miúdo me lembro de ter passado uma vez numa incursão ao musgo, por alturas do Natal, e isolado da circular que rodeia a cidade por um campo com uma casa de lavrador muito velha, onde os caseiros idosos cultivavam, na sua maior extensão, milho, durante o Verão, batatas e mais alguns produtos hortícolas, para além do vinho que produziam na latada a encimar o caminho que percorria toda a extensão do campo desde o portão de acesso, mais próximo do prédio onde habito, até à velha casa sua residência até à morte, primeiro de um, depois do outro, apenas presumo.

Do lado oposto, os campos da casa de saúde mental, pouco cultivados e usados para o que quer que seja, e, no lado mais afastado, junto à circular, meia dúzia de pequenas casas, arranjadas e bonitas, de gente modesta.

Foi este o meu quadro desde que me mudei para o prédio. Aproveitava os minutos de relaxe para vir à varanda observar os pássaros, passear os olhos pelo verde, por aquele pedaço de natureza.

Um dia, o que restava do telhado da velha casa caiu com o mau tempo de algum Inverno, mas tudo permaneceu bem. As ervas continuavam a crescer, os frutos a cair, os pássaros a voltear pelas árvores, pelas ruínas cobertas de trepadeiras.

No Verão, no campo vizinho, apareciam os netos do velho casal que corriam por entre as ervas, perdiam-se no meio do milho e obedeciam aos assobios estridentes dos adultos, chamando por eles.

Os idosos, provavelmente, acamaram. Seguia os acontecimentos à distância, como num filme mudo, da varanda do sexto andar onde habito. Comecei a sentir a falta deles. O carro da assistência da Santa Casa da Misericórdia cá da cidade começou a visitar o local, a entrar pelo portão, a percorrer aos solavancos o caminho de terra, irregular, até à velha casa e voltar, diariamente.

Não consegui reparar noutros pormenores. Apenas que o campo deixou de ser cultivado, os vizinhos idosos desapareceram na voragem do tempo. Os filhos ainda se juntaram mais um ou outro ano para tirar algum proveito da vinha, até que ficou apenas um a habitar a velha casa.

Tratava-se de um homem de meia-idade, solteiro, com um tasco na cidade, que todos os dias, à mesma hora, fazia o caminho de casa até ao portão, saindo para o tasco, na cidade. Ao final do dia, ao fim da tarde, regressava a casa, fazendo, sempre a pé, o caminho até à habitação.

Pouco tempo teve esta vida, enquanto o campo, grande demais para ele, ficava completamente abandonado. Uma vez ou outra ainda se atirou às ervas que cresciam desalmadamente e lhe tolhiam o passo no caminho. Fazia alguns trabalhos agrícolas no final da tarde, depois do encerramento do tasco, numa pequena horta perto de casa.

Soube, por um ou por outro amigo, alguns pormenores da sua vida. Que o senhorio do tasco lhe tinha dado um prazo para fechar, e assim foi. A rotina horária de ida e volta entre o tasco e a casa foi interrompida. O caminho, do portão para a casa, foi abandonado e o homem passou a entrar e sair diretamente pela estrada usando um colete refletor. Os donos do campo vieram uma vez, espreitaram por sobre o muro em poses ridículas e, passados uns dias, veio um homem com um trator que revolveu toda a extensão do campo cortando cerce toda aquela vegetação incluindo pequenas árvores e arbustos que proliferavam livremente. Era Primavera e fiquei com um nó na garganta com a suspeita do mal que aquela tarefa causaria à vida selvagem que por ali havia. O certo é que, no espaço de apenas dois ou três meses, de novo estava tudo coberto pela mesma vegetação, as árvores ou arbustos já tinham recuperado grande parte do seu porte. Do único inquilino da casa perdi o rasto.

Sei que aquele campo está marcado como zona de construção. Que os seus proprietários, meus antigos conhecidos e vizinhos, herdeiros de uma avantajada fortuna, são uns conhecidos absentistas, sem rasgo, nem inteligência para dar uso às inúmeras propriedades e capital que possuem.

O ano anterior ao deflagrar da pandemia foi um ano de mudanças drásticas para aquele pedaço de paisagem, aquele pedaço de vida, que me preenchia a vista e entretinha o espírito.

De repente vieram uns homens com uma máquina, rebentaram com o portão de acesso ao quintal da casa arruinada e rapidamente começaram a refazer os muros vizinhos alargando o acesso à estreita faixa de terreno e tornando quase impraticável a passagem na cangosta.

Era Verão e os trabalhos tornaram-se mais intensos.

Na rua de acesso ao meu prédio, cuja única saída era a cangosta, começou um movimento incessante de camiões que fez desaparecer a casa em ruínas, toda a vegetação luxuriante do pequeno quintal e depois toda a terra arável. No local ficou uma enorme cratera, de forma retangular, aproveitando praticamente todo o espaço disponível.

Ao Verão sucedeu um Outono e um Inverno chuvosos e os trabalhos não pararam por um minuto. Das 7 ou 8 da manhã, até as 6 ou 7 horas da tarde, consoante o horário de Verão ou de Inverno,  não mais do que uma dúzia de homens, imigrantes africanos e latino-americanos, trabalharam duramente submersos na água com que a chuva persistente alagou o buraco.

Construíram afincadamente os alicerces da construção, as primeiras paredes, metidos na água e no barro que ficou depois das retroescavadoras terem completado o seu trabalho. Um corrupio de camiões transportou toda aquela terra e barro para algures, percorrendo a rua de acesso ao meu prédio, impedindo o estacionamento dos automóveis de um dos lados da rua para que pudessem transitar.

Passou o ano e os primeiros meses de 2020 trouxeram-nos a pandemia de covid-19 que alarmou o mundo. Em Março, tudo parava num confinamento geral que durou meses, mas aquela dúzia de homens não parou um minuto. Indiferentes a tudo, continuaram no seu trabalho laborioso de erguer, andar a andar, as paredes e as lajes de betão que separavam cada um deles.

Perante o meu olhar interessado e chocado, a construção só se deteve no sexto andar acima do solo. Os homens chegavam pela manhã e eram recolhidos ao final da tarde pelas carrinhas que vinham de outras obras.

O dono da obra, um autêntico judeu - um adjetivo usado por um amigo meu noutro contexto, mas o termo exato para designar aquele homem - era um tipo já avançado na idade, careca, com uma boina na cabeça e o casaco pelos ombros, que não parava um minuto.

Dono de um mercedes velho de matrícula espanhola, o homem entrava e saía na obra umas vinte vezes ao dia indiferente ao tempo ou à lama. Era ele quem dirigia pessoalmente o andar dos trabalhos enquanto se ausentava possivelmente para tratar de assuntos que diziam respeito ao seu andamento. Entretanto começou a trocar de mercedes, ora trazia o velho, ora um mais novo.

Parava junto ao portão, sempre fechado e galgava pela obra dentro indiferente aos montes de terra revolvida e ao entulho que enchiam o curto perímetro disponível depois de o prédio ter começado a crescer. Uma estreita faixa de menos de vinte metros desde o muro da velha cangosta até à construção, onde existia um contentor que os trabalhadores mal utilizavam, a latrina móvel usada nas obras, a grua indispensável, montada depois dos trabalhos de escavação do buraco, e toda a espécie de materiais para a construção.

Os trabalhos decorreram com uma precisão mecânica. À distância, pareceu-me que não se perdeu um minuto. O “judeu”, no seu incessante movimento de formiga laboriosa, fazia tudo andar com uma precisão de relógio suíço. Um prédio de oito andares, com as caves de betão enterradas debaixo do solo, foi construído até à cobertura até ao Verão seguinte. Um ano, contando com todos os trabalhos desde a remoção do quintal pré-existente.

O que mais me espantou em tudo isto foi como aquele homem conseguiu enfiar um prédio tão grande numa tão pequena nesga de terreno. A perspetiva de lucro é enorme e poderá assegurar-lhe um lugar no paraíso rodeado de virgens e finalmente sem nada para fazer. Mas não me parece que seja esse o sonho que aquele homem persegue, é mais crível que apenas sonhe deitar-se num travesseiro cheio de notas. Talvez fique a viver numa daquelas suites que está a construir. Enfim, é difícil imaginar o que lhe passa na cabeça.

Entretanto aquela dúzia de homens que trabalhou incansavelmente na construção do prédio, também já desapareceu. Provavelmente rumo a outras obras, se tiveram sorte, outros, talvez, regressaram a Espanha ou até mesmo aos seus países de origem sem conseguirem trabalho que justifique a obtenção de um visto de residência neste fruste “el dorado”.

Cheguei a cruzar-me com eles de perto: jovens negros com roupas excêntricas para os nossos hábitos e headphones nas orelhas, homens de idade carregada por um trabalho duríssimo que lhes consome o resto da juventude. E-vem-nos-à-memória os versos de Sérgio Godinho, vi-te a trabalhar o dia inteiro, construir as cidades pr'ós outros, carregar pedras, desperdiçar, muita força p'ra pouco dinheiro. Que força é essa, amigo?”

Mas o mundo lá fora deu uma volta por completo indiferente a todo aquele esforço.

No meio do Inverno, a pandemia espalhou-se pelo mundo parecendo congelar tudo menos aquela obra. Confinados durante três meses, observámos pela janela as ervas a crescer no chão, por entre os paralelos da rua. Do mundo, do nosso e do dos outros, recebíamos feedback apenas pelos ecrãs do computador e da televisão. Estávamos bem, fechados em casa, confortáveis, com direito a uma ração diária de ida à rua supervisionada pela polícia. Trabalhávamos o necessário para o mundo não parar totalmente, mantínhamos o famoso distanciamento social e discutíamos a causa da coisa.

Na obra não se parou um minuto e o confinamento acabou. Voltámos aos nossos empregos e a carcaça do prédio ficou pronta, parecendo oscilar na paisagem. Os trabalhos que decorrem agora são mais impercetíveis. A grua alta e forte que também trabalhou sem cessar durante todo aquele período cedeu sem um ai à desmontagem perfeita e seguiu empacotada o seu caminho em cima de um ou mais camiões.

Demorará ainda um ano antes que tudo esteja concluído, calculo. Depois chegarão os primeiros habitantes, enfatuados e a armar ao rico, com os seus automóveis que guardarão na garagem. Poucos estacionamentos à superfície haverá para os poderem mostrar. Na cobertura, nascerá a apregoada piscina onde no Verão poderão iniciar um invejado bronzeado, e tudo ficará bem… ou não.

O homem poderá olhar para o edifício como Deus para o mundo, quando o concluiu, e dizer a alguém a seu lado que o acompanhe: fui eu quem isto criei. E se houver alguém ao lado dirá algumas palavras de circunstância, talvez um sim senhor, e siga o seu passeio reparando na quantidade de prédios, uns de uma forma, outros de outra  que existem na cidade.

O prédio permanecerá por várias décadas, devorado pelo crescer da cidade. O homem deixará de ser o dono e os condóminos todos os anos se reunirão para debater os problemas dele imanentes. Eu ficarei ainda mais uns anos, assim o espero, a guardar a paisagem que me resta. A rezar para que o filho dos velhos caseiros resista na casa que foi dos seus pais. Para que os donos do campo continuem na senda do absentismo e mantenham intacto o espírito pouco pródigo que os caracteriza. E que, depois da circular da cidade, os campos continuem verdes, episodicamente cruzados por tratores que os tornam castanhos da terra revolvida. E os montes, para lá deles, continuem intactos e permaneçam montes muito para lá da minha morte.

 






 

 

 

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